Tão tarde.
Vou à janela e observo o cerrar da noite. Os grilos já deixaram de cantar. Um silêncio colossal impera. Ao longe, pouco mais se percebe do que o cheiro a álcool vindo de um beco qualquer, os passos destrambelhados de almas cansadas, caminhando por socorro e por abrigo. Vozes na rua só dos loucos, dos perdidos. É verão, mas nos ossos a existência gela.
Os gatos vagueiam mansinho, em alerta para qualquer movimento. Não se vêem pássaros ou cães, dormem aconchegados nos seus esconderijos, esquecidos dos dias. Ali vai uma ratazana, apressada. Um morcego avista-se quase sem se ver.
Podia ser o fim, o aproximar do apocalipse; podia faltar apenas um segundo. Aflijo-me, sinto o ar estrangular numa única inspiração. Se expirar, parece que se concretiza: que qualquer coisa rebenta e que é o fim.
O fim.
Fiquei, sem dúvida, a pé até demasiado tarde. Vivi o quase vazio e, no entanto, esse quase é a palavra-chave.
Quando acaba o fim e começa o início? Em que limbo termina o dia e recomeça o outro?
A nossa vida extingue-se e depois? O que vem depois? Quando?
Não sei bem quando, mas o sol começou a nascer.
Começam a escutar-se piares tímidos. A meia-luz, um cão espreguiça-se. Junto a si, flores abrem devagarinho. Uma criança que chora e, algures, o som de uma panela que se pousa numa cozinha por perto. Os gatos regressam a casa, os morcegos e ratazanas às suas tocas.
Os perdidos e loucos afinal não estavam assim tão perdidos e loucos. E quem procurava socorro, salvou-se. Sobreviventes. Mal eles sabem que o são, mas têm mais um dia para tentar descobrir.
Enquanto os raios de sol tocarem as plantinhas mais pequenas que brotam rebeldes entre as ranhuras da calçada e a chuva as alimentar, podemos ter esperança, certo?
Deixou de faltar um segundo para o fim e há tempo que baste para recomeçar; basta acertar o relógio.